terça-feira, 13 de novembro de 2007

Reflexões I

As escolas públicas, o deus mercado e a democracia — ou como os discursos baseados na evidência e nas falinhas mansas encobrem as práticas mais canalhas

«Pode-se não perceber nada na superfície, mas nas profundezas o inferno está em chamas».
(Y. B. Mangunwijaya, escritor indonésio, 1998)

O capitalismo global não tem inimigos externos. Agora o inimigo é a opinião pública que é preciso manipular, em cada país, de modo a manter o poder, sem anular, ainda, o direito de voto. A arma mais poderosa dos actuais governos já não é o velho poder militar, mas competentes gabinetes de comunicação. Aos velhos generais sucederam os directores de marketing.
Estratégias sofisticadas, bem planeadas e poderosas, são usadas para transformar os discursos interesseiros, dos donos do mercado, em ideias populares. «Fazendo aparecer os interesses das corporações financeiras como se fossem a expressão política de toda a sociedade»
(Popkewitz).

Um exemplo desta estratégia é o argumento segundo o qual o futuro da nação depende inteiramente da educação e que a escola pública não está a responder capazmente a este desafio. Com esta ideia vem embrulhada a declaração de que não há crise do capitalismo e que as insuficiências deste se devem à falta de mão-de-obra altamente qualificada. Isto é dito onde a realidade nos mostra que a mão-de-obra qualificada está em larga maioria sem emprego, ou a ser escandalosamente explorada em trabalho desqualificado.

Ao culpabilizarem o sistema público de ensino, os defensores da submissão da sociedade aos interesses momentâneos do mercado, apropriam-se das preocupações dos pais e de outros cidadãos, favorecendo os argumentos a favor da privatização da educação. Além disso, conseguem disfarçar os seus interesses egoístas, apresentando-os como conclusões cientificas e verdades inquestionáveis e universais.

A afirmação de que uma boa educação, só por si, é um pré-requisito para que todos tenham um bom emprego, e um bom salário, é uma mistificação. Tal mistificação faz parte do pacote discursivo e das práticas dos que recusam discutir o sistema e as condições económicas dos países. Condições que favorecem ou restringem a quantidade e a qualidade dos empregos disponíveis, bem como a facilidade ou dificuldade de acesso ao mercado de trabalho. «Não há evidência de uma relação directa entre as boas qualificações dos estudantes e altos salários futuros quando se controlam variáveis como a de classe social» (Spring). A estrutura salarial e o nível das remunerações, são determinantes no incentivo à procura de formação, sobretudo, por parte dos mais pobres.

É evidente que um nível educacional mais elevado melhora as oportunidades individuais de acesso ao trabalho. Mas também é evidente que o facto de elevarmos os níveis de qualificação, tem contribuído para acentuar as desigualdades económicas e culturais. O argumento de que uma boa educação, só por si, produz vantagens económicas, esconde a importância que a divisão nacional e internacional do trabalho têm no incremento da desigualdade social e no acesso ao trabalho qualificado. Continuam a ser as políticas económicas — e não as políticas educativas — a determinar o aumento ou a diminuição, e a natureza, dos postos de trabalho, e, questão crucial, os níveis salariais e a menor ou maior desigualdade educativa e social.
A retórica que diz que o futuro da nação depende apenas da educação[1], é mais uma forma de fugir à responsabilidade de reconhecer a incapacidade do capitalismo em responder às obrigações dos direitos de cidadania. E serve também para abrir as portas a mais um negocio, sem riscos, feito à custa do desmantelamento do Estado, da privatização da educação, e do incremento das desigualdades sociais.

No bombardeamento mediático a que estamos sujeitos, conceitos como competitividade, eficiência, produtividade, sacrifício, cliente, consumidor, substituíram conceitos democráticos como, por exemplo, igualdade, solidariedade, paz, cooperação, Cidadão e cidadania. Produzir «capital humano», em vez de formar cidadãos, faz parte da religião neoliberal e do novo credo educacional.

Das muitas tendências neoliberais, em matéria de educação, uma vai em crescendo. Ela tende a organizar o sistema de modo a que os alunos considerados com baixo potencial de aprendizagem sejam discretamente descartados, aprendendo apenas o básico, em escolas pobres. O poder sabe, ao contrario do que apregoa, que na economia global, quer a nível internacional quer em cada nação, não só prevalece, como se vai alargando, a quantidade de trabalho que exige baixa qualificação. Por isso, defendem a concentração do investimento na formação de elites, embora já pensem também que o trabalho altamente qualificado pode ficar mais barato se importado[2]. A observação do mercado de trabalho, a nível internacional, mostra que a desigualdade educativa vai em crescendo e com ela a desigualdade e económica.

As reformas neoliberais subordinam a educação às regras do mercado. Os seus defensores consideram que os alunos, oriundos das classes média e média alta, têm maior potencial de «retorno» do investimento em educação. E que é neles que vale a pena investir. A massa dos pobres — pescando nela algum que se destaque — deve ser «democraticamente» encaminhada para formações profissionalizantes básicas e baratas. Para criarem um sistema educativo que facilite estes objectivos têm vindo a propagandear, e a naturalizar, conceitos como a «livre escolha da escola» e o «cheque-ensino».
A «livre escolha da escola» é apresentada em nome da liberdade dos pais. De facto, trata-se de uma enganadora manipulação do termo liberdade. No acesso a qualquer bem de consumo, só ilusoriamente somos livres de o obter, pois cada um é condicionado pelos recursos económicos de que dispõe. Assim, a aplicação deste modelo de mercado no acesso à educação, colocar-nos-ia em contradição com os princípios democráticos da igualdade e universalidade que decorrem do conceito de educação como um bem público. Para disfarçar a desigualdade produzida por esta medida, os elitistas invocam o «cheque-ensino».

O «cheque-ensino» é mais uma mistificação. Se fosse introduzido seria magro à partida e com tendência para a anorexia a prazo. Emagrecendo-o progressivamente, o Estado encontraria nele o modo de escapar às suas obrigações educativas universais. Mas acima de tudo, ele seria o melhor meio de promover a desigualdade de acesso dos cidadãos à boa educação. Neste modelo, o que conta não é tanto o valor do cheque dado pelo Estado mas o que cada um lhe pode juntar. E é esse complemento, à medida do bolso de cada um, a decidir a melhor ou pior escola a que os seus terão direito.
A «liberdade de escolha da escola» e o «cheque-ensino», são duas das ferramentas que o neoliberalismo quer usar para desenvolver a nova sociedade de classes cada vez mais desigual e mais subserviente ao poder dominante.

Nesta perspectiva, os sistemas de educação pública (sem esquecer o que neles é preciso transformar e recriar), têm um imenso sentido para milhões de crianças e jovens. Para milhões, a escola é quase a única oportunidade de aumentarem o seu «capital cultural» num mundo cada vez mais injusto (Bourdieu). A escola pública é essencial para salvaguardar e desenvolver a democracia.
A política educativa que tem vindo a ser aplicada em Portugal, copiada da deriva neoliberal, é, antes de mais, um ataque à democracia e à cidadania. Paradoxalmente, é-nos apresentada sob a capa das boas intenções e do interesse geral. Mas, como já dizia a minha avó, «de boas intenções está o inferno cheio».

[1] Pensada segundo os interesses das elites dominantes.
[2] É o que já se passa no desporto. É mais barato importar os melhores atletas dos países pobres do que formá-los nos países ricos. Leia-se o que se refere à «carta verde» nos EUA e à «carta azul» na UE.

José Paulo Serralheiro; Jornal "a Página" , ano 16, nº 171, Outubro 2007, p. 3.

Reflexões II

Reflexões em relação ao texto anterior:

Em relação à primeira parte concordo com o sentido geral e considero até bastante relevante. Mas naturalmente acho que a educação, seja a que nível fôr, é um meio de contribuir para o bem próprio e consequentemente para o bem geral. O argumento que há muitos licenciados sem emprego é verdade mas também limitativo. Acho até que as empresas não investem em pessoal com formação porque em geral os empresários têm eles próprios pouca educação. Depois, há outras formas de gerar rentabilidade para além do vulgar "emprego". E qualquer função que desempenhemos, seremos mais eficazes se tivermos mais conhecimento sobre a mesma.
O Estado baseado no "funcionário ignorante" que só obedece é uma das razões do nosso atraso em relação ao resto da Europa.

Por outro lado, e talvez paradoxalmente, também considero que há mais educação do que a tradicional leccionada na escola. As pessoas devem fazer a sua auto-formação e também devem ser empreendedoras na sua vida pessoal. Isto de tirar um curso e achar que agora é só esperar que chegue o dinheiro, é chão que já deu uvas - já há muito que não resulta. Embora muita da educação actual assente neste modelo.

No limite, actualmente existem dois modelos de governo opostos: O estado liberal em que é a iniciativa pessoal de cada um que gera riqueza, sendo depois responsáveis por manter a estrutura social coesa, através da criação de empregos ou até pela caridade ou filantropia (perto do modelo dos Estados Unidos ou do Mónaco).
Por outro lado temos o modelo social em que todos os recursos são redistribuidos pelos cidadãos assegurando um mínimo de condições para todos. Neste modelo não temos que nos esforçar para termos o nosso bem estar assegurado, mas onde também não há qualquer recompensa se o fizermos. Julgo que este só funciona em estados onde haja muita riqueza para redistribuir ou que os cidadãos sejam tão responsáveis que não deixem de se esforçar para o bem comum quando a tal não são obrigados, ou motivados.

Naturalmente será uma situação intermédia entre estes dois modelos limite que residirá o Estado adequado aos cidadãos que temos.

Nesse sentido, concordo com toda a argumentação final do artigo. O modelo do cheque ensino cria clivagens sociais que em nada contribuêm para a formação pessoal (para além da lectiva) de cada individuo. Acho muito mais válido aprendermos todos juntos e depois quem quiser, ou conseguir vai mais longe. Mas por um momento começámos todos juntos e em pé de igualdade. E quem quiser ser elitista desde a primeira hora que vá ter os filhos para a Suiça e deixe-os lá num colégio para nunca saberem o que é ser Português.
Para o melhor e para o pior.