As escolas públicas, o deus mercado e a democracia — ou como os discursos baseados na evidência e nas falinhas mansas encobrem as práticas mais canalhas
«Pode-se não perceber nada na superfície, mas nas profundezas o inferno está em chamas».
(Y. B. Mangunwijaya, escritor indonésio, 1998)
O capitalismo global não tem inimigos externos. Agora o inimigo é a opinião pública que é preciso manipular, em cada país, de modo a manter o poder, sem anular, ainda, o direito de voto. A arma mais poderosa dos actuais governos já não é o velho poder militar, mas competentes gabinetes de comunicação. Aos velhos generais sucederam os directores de marketing.
Estratégias sofisticadas, bem planeadas e poderosas, são usadas para transformar os discursos interesseiros, dos donos do mercado, em ideias populares. «Fazendo aparecer os interesses das corporações financeiras como se fossem a expressão política de toda a sociedade»
(Popkewitz).
Um exemplo desta estratégia é o argumento segundo o qual o futuro da nação depende inteiramente da educação e que a escola pública não está a responder capazmente a este desafio. Com esta ideia vem embrulhada a declaração de que não há crise do capitalismo e que as insuficiências deste se devem à falta de mão-de-obra altamente qualificada. Isto é dito onde a realidade nos mostra que a mão-de-obra qualificada está em larga maioria sem emprego, ou a ser escandalosamente explorada em trabalho desqualificado.
Ao culpabilizarem o sistema público de ensino, os defensores da submissão da sociedade aos interesses momentâneos do mercado, apropriam-se das preocupações dos pais e de outros cidadãos, favorecendo os argumentos a favor da privatização da educação. Além disso, conseguem disfarçar os seus interesses egoístas, apresentando-os como conclusões cientificas e verdades inquestionáveis e universais.
A afirmação de que uma boa educação, só por si, é um pré-requisito para que todos tenham um bom emprego, e um bom salário, é uma mistificação. Tal mistificação faz parte do pacote discursivo e das práticas dos que recusam discutir o sistema e as condições económicas dos países. Condições que favorecem ou restringem a quantidade e a qualidade dos empregos disponíveis, bem como a facilidade ou dificuldade de acesso ao mercado de trabalho. «Não há evidência de uma relação directa entre as boas qualificações dos estudantes e altos salários futuros quando se controlam variáveis como a de classe social» (Spring). A estrutura salarial e o nível das remunerações, são determinantes no incentivo à procura de formação, sobretudo, por parte dos mais pobres.
É evidente que um nível educacional mais elevado melhora as oportunidades individuais de acesso ao trabalho. Mas também é evidente que o facto de elevarmos os níveis de qualificação, tem contribuído para acentuar as desigualdades económicas e culturais. O argumento de que uma boa educação, só por si, produz vantagens económicas, esconde a importância que a divisão nacional e internacional do trabalho têm no incremento da desigualdade social e no acesso ao trabalho qualificado. Continuam a ser as políticas económicas — e não as políticas educativas — a determinar o aumento ou a diminuição, e a natureza, dos postos de trabalho, e, questão crucial, os níveis salariais e a menor ou maior desigualdade educativa e social.
A retórica que diz que o futuro da nação depende apenas da educação[1], é mais uma forma de fugir à responsabilidade de reconhecer a incapacidade do capitalismo em responder às obrigações dos direitos de cidadania. E serve também para abrir as portas a mais um negocio, sem riscos, feito à custa do desmantelamento do Estado, da privatização da educação, e do incremento das desigualdades sociais.
No bombardeamento mediático a que estamos sujeitos, conceitos como competitividade, eficiência, produtividade, sacrifício, cliente, consumidor, substituíram conceitos democráticos como, por exemplo, igualdade, solidariedade, paz, cooperação, Cidadão e cidadania. Produzir «capital humano», em vez de formar cidadãos, faz parte da religião neoliberal e do novo credo educacional.
Das muitas tendências neoliberais, em matéria de educação, uma vai em crescendo. Ela tende a organizar o sistema de modo a que os alunos considerados com baixo potencial de aprendizagem sejam discretamente descartados, aprendendo apenas o básico, em escolas pobres. O poder sabe, ao contrario do que apregoa, que na economia global, quer a nível internacional quer em cada nação, não só prevalece, como se vai alargando, a quantidade de trabalho que exige baixa qualificação. Por isso, defendem a concentração do investimento na formação de elites, embora já pensem também que o trabalho altamente qualificado pode ficar mais barato se importado[2]. A observação do mercado de trabalho, a nível internacional, mostra que a desigualdade educativa vai em crescendo e com ela a desigualdade e económica.
As reformas neoliberais subordinam a educação às regras do mercado. Os seus defensores consideram que os alunos, oriundos das classes média e média alta, têm maior potencial de «retorno» do investimento em educação. E que é neles que vale a pena investir. A massa dos pobres — pescando nela algum que se destaque — deve ser «democraticamente» encaminhada para formações profissionalizantes básicas e baratas. Para criarem um sistema educativo que facilite estes objectivos têm vindo a propagandear, e a naturalizar, conceitos como a «livre escolha da escola» e o «cheque-ensino».
A «livre escolha da escola» é apresentada em nome da liberdade dos pais. De facto, trata-se de uma enganadora manipulação do termo liberdade. No acesso a qualquer bem de consumo, só ilusoriamente somos livres de o obter, pois cada um é condicionado pelos recursos económicos de que dispõe. Assim, a aplicação deste modelo de mercado no acesso à educação, colocar-nos-ia em contradição com os princípios democráticos da igualdade e universalidade que decorrem do conceito de educação como um bem público. Para disfarçar a desigualdade produzida por esta medida, os elitistas invocam o «cheque-ensino».
O «cheque-ensino» é mais uma mistificação. Se fosse introduzido seria magro à partida e com tendência para a anorexia a prazo. Emagrecendo-o progressivamente, o Estado encontraria nele o modo de escapar às suas obrigações educativas universais. Mas acima de tudo, ele seria o melhor meio de promover a desigualdade de acesso dos cidadãos à boa educação. Neste modelo, o que conta não é tanto o valor do cheque dado pelo Estado mas o que cada um lhe pode juntar. E é esse complemento, à medida do bolso de cada um, a decidir a melhor ou pior escola a que os seus terão direito.
A «liberdade de escolha da escola» e o «cheque-ensino», são duas das ferramentas que o neoliberalismo quer usar para desenvolver a nova sociedade de classes cada vez mais desigual e mais subserviente ao poder dominante.
Nesta perspectiva, os sistemas de educação pública (sem esquecer o que neles é preciso transformar e recriar), têm um imenso sentido para milhões de crianças e jovens. Para milhões, a escola é quase a única oportunidade de aumentarem o seu «capital cultural» num mundo cada vez mais injusto (Bourdieu). A escola pública é essencial para salvaguardar e desenvolver a democracia.
A política educativa que tem vindo a ser aplicada em Portugal, copiada da deriva neoliberal, é, antes de mais, um ataque à democracia e à cidadania. Paradoxalmente, é-nos apresentada sob a capa das boas intenções e do interesse geral. Mas, como já dizia a minha avó, «de boas intenções está o inferno cheio».
[1] Pensada segundo os interesses das elites dominantes.
[2] É o que já se passa no desporto. É mais barato importar os melhores atletas dos países pobres do que formá-los nos países ricos. Leia-se o que se refere à «carta verde» nos EUA e à «carta azul» na UE.
José Paulo Serralheiro; Jornal "a Página" , ano 16, nº 171, Outubro 2007, p. 3.
terça-feira, 13 de novembro de 2007
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