O uso mais comum da dicotomia esquerda / direita é como tradição identitária, assente na história política e ideológica dos últimos 200 anos, do mundo que emergiu do duplo processo da Revolução Francesa e da Revolução Industrial. Poderia ser enunciado assim: eu sou de esquerda ou de direita porque defendo as posições A e B, que historicamente foram associadas à esquerda ou à direita. Reconstruo assim a minha identidade pelas palavras, no seu uso histórico, que ainda permanece vivo na tradição actualizada. Há um forte componente afectivo nessa enunciação, um sentimento de pertença a uma família, a uma parte, a uma tradição, que transporta os seus ícones, os seus símbolos, os seus textos, as suas canções, o seu modo de "ser".
Começando a partir daqui, deste sentimento de pertença, em parte volitivo porque é uma escolha, noutra "de classe" ou de grupo porque fruto de uma história que "tomou partido", encontramos logo uma ambiguidade. Essa ambiguidade levaria a que fosse mais exacto enunciar a pertença nestes termos: eu sou de esquerda ou de direita porque defendo as posições A e B, que hoje estão associadas à esquerda ou à direita. Hoje, e não necessariamente ontem, porque a dicotomia reconstruiu-se ela própria historicamente e enuncia-se nos dias de hoje de forma diferente de ontem. Se quiséssemos ser mais rigorosos, teríamos que concluir que a dicotomia esquerda/direita, como é hoje utilizada de forma identitária, é pós-Maio 68, feita pela conjunção dos movimentos políticos radicais à volta desse ano e com a emergência de uma cultura juvenil de massas, geradora de ícones e símbolos poderosos.
Um caso típico das ambiguidades sobre a esquerda/direita tem a ver com a posição liberal face aos "costumes", tradicionalmente associada à esquerda. O liberalismo dos costumes só nos dias de hoje, depois de Maio de 68, é que é claramente ligado à esquerda. É verdade que alguns minoritários grupos anarquistas e radicais defendiam o amor livre, e as práticas anticoncepcionais, o "neo-malthusianismo", desde o início do século XX, mas basta ler a imprensa operária, e as suas injunções contra a "corrupção" moral da burguesia, os seus comentários sobre a embriaguez, e a prostituição, para encontrar um forte moralismo conservador que hoje deixaria a Igreja católica a parecer um centro de libertinagem. O próprio movimento comunista sempre foi tradicionalmente, até por herança do movimento operário oitocentista, muito conservador quanto aos costumes. De novo, é o movimento esquerdista de Maio 68 que retorna à valorização de autores como Reich, ou a momentos como o dos anos 20 na legislação soviética, esquecendo que estes não tiveram qualquer continuidade posterior, mais caracterizada pela forte repressão contra a homossexualidade ou pelo ataque à "dissolução" dos costumes. A legislação, aparentemente mais liberal quanto ao aborto ou ao planeamento familiar, dos países comunistas associava-se muito mais, como na China, a políticas de controlo da população do que a qualquer liberalismo dos costumes. (A ideia, muito portuguesa, que a distinção entre os defensores e críticos do aborto se faz entre a esquerda e a direita esquece o óbvio: que é muito mais importante nessa distinção a religião do que a política, e que, em muitos países que não são católicos, o problema está longe de se colocar nos mesmos termos. Esquece outras coisas que a leitura do Avante! dos anos 30 ou a tese académica de Cunhal sobre o aborto deveria lembrar.)
Outro aspecto desta reconstrução para o passado das dicotomias do presente, é a que considera a tradição ecológica na esquerda. A crítica ecológica, resumida de forma genérica como uma crítica ao modelo de industrialização ocidental, a favor de outros modelos alternativos menos predatórios dos recursos e voltando a uma visão mais "natural" da vida, seria tratada de reaccionária e anarquizante (no sentido de utópica e "rural") pela esquerda europeia até muito recentemente. O modelo de crescimento "socialista" era baseado exactamente no mesmo conceito predatório do capitalismo industrial, levando ainda mais longe a adoração da "electricidade" (em Lenine) para uma apologia do cientismo, na chamada "revolução técnico-científica" de que se gabava a RDA. Esta visão da industrialização estendia-se ao próprio modelo da sociedade como fábrica, elevando o sistema Taylor à forma suprema de "organização científica do trabalho". Stakhanov e Taylor, os "sovietes" e a "electricidade", a política e a tecnologia.
Para confundir a falsa clareza da identidade esquerda/direita não faltam exemplos. Eles parecem provocatórios porque o retorno que hoje se dá em Portugal à enunciação identitária pela dicotomia esquerda/direita só se pode fazer iludindo os grandes momentos traumáticos da história dessas palavras. A esquerda portuguesa não consegue pensar o comunismo; a direita o fascismo e, em particular, o nazismo. Ambas chegam ao absurdo de dizer que o "estalinismo era de direita e uma ruptura com a verdadeira esquerda" e que o nazismo, como "colectivismo totalitário", era de esquerda. A esquerda hoje diz que nada tem a ver com o comunismo e a direita com o fascismo, o que é uma forma de serem 'fukuyamistas' involuntários. A partir daqui tudo passa a ser confuso: no PC Chinês o que é que valorizamos, o impulso para a economia de mercado, ou a estrutura totalitária do poder? Em Pinochet o que é que valorizamos, a liberdade económica ou a ditadura política? Os bispos progressistas brasileiros são de esquerda porque defendem a reforma agrária, ou de direita porque são contra o aborto? Por aí adiante.
Concluo como comecei: a dicotomia esquerda/direita não tem hoje qualquer utilidade para olharmos para o mundo de forma criativa. O mundo que a originou acabou quando o legado da Revolução Francesa e da Revolução Industrial deixou de ser o pilar da contemporaneidade. Os "factos incómodos", de que Thomas S. Kuhn falava para as teorias científicas, foram pouco a pouco dissolvendo esse mundo: a bomba termonuclear acabou com a "guerra como continuação da política por outros meios" e mostrou a impossibilidade de uma "luta de classes" mundial sem apocalipse, as ideias de Malthus ganharam um novo fôlego com a crítica ecológica, o fundamentalismo religioso introduziu de novo a diferenciação cultural-civilizacional como mais importante do que o conflito "económico", etc. etc. Há tanta coisa para ver de novo, está na altura de ser curioso outra vez.
Historiador
Por José Pacheco Pereira em 28 de Outubro de 2004.
sábado, 16 de janeiro de 2010
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário