sábado, 16 de janeiro de 2010

Direita e esquerda

O uso mais comum da dicotomia esquerda / direita é como tradição identitária, assente na história política e ideológica dos últimos 200 anos, do mundo que emergiu do duplo processo da Revolução Francesa e da Revolução Industrial. Poderia ser enunciado assim: eu sou de esquerda ou de direita porque defendo as posições A e B, que historicamente foram associadas à esquerda ou à direita. Reconstruo assim a minha identidade pelas palavras, no seu uso histórico, que ainda permanece vivo na tradição actualizada. Há um forte componente afectivo nessa enunciação, um sentimento de pertença a uma família, a uma parte, a uma tradição, que transporta os seus ícones, os seus símbolos, os seus textos, as suas canções, o seu modo de "ser".
Começando a partir daqui, deste sentimento de pertença, em parte volitivo porque é uma escolha, noutra "de classe" ou de grupo porque fruto de uma história que "tomou partido", encontramos logo uma ambiguidade. Essa ambiguidade levaria a que fosse mais exacto enunciar a pertença nestes termos: eu sou de esquerda ou de direita porque defendo as posições A e B, que hoje estão associadas à esquerda ou à direita. Hoje, e não necessariamente ontem, porque a dicotomia reconstruiu-se ela própria historicamente e enuncia-se nos dias de hoje de forma diferente de ontem. Se quiséssemos ser mais rigorosos, teríamos que concluir que a dicotomia esquerda/direita, como é hoje utilizada de forma identitária, é pós-Maio 68, feita pela conjunção dos movimentos políticos radicais à volta desse ano e com a emergência de uma cultura juvenil de massas, geradora de ícones e símbolos poderosos.

Um caso típico das ambiguidades sobre a esquerda/direita tem a ver com a posição liberal face aos "costumes", tradicionalmente associada à esquerda. O liberalismo dos costumes só nos dias de hoje, depois de Maio de 68, é que é claramente ligado à esquerda. É verdade que alguns minoritários grupos anarquistas e radicais defendiam o amor livre, e as práticas anticoncepcionais, o "neo-malthusianismo", desde o início do século XX, mas basta ler a imprensa operária, e as suas injunções contra a "corrupção" moral da burguesia, os seus comentários sobre a embriaguez, e a prostituição, para encontrar um forte moralismo conservador que hoje deixaria a Igreja católica a parecer um centro de libertinagem. O próprio movimento comunista sempre foi tradicionalmente, até por herança do movimento operário oitocentista, muito conservador quanto aos costumes. De novo, é o movimento esquerdista de Maio 68 que retorna à valorização de autores como Reich, ou a momentos como o dos anos 20 na legislação soviética, esquecendo que estes não tiveram qualquer continuidade posterior, mais caracterizada pela forte repressão contra a homossexualidade ou pelo ataque à "dissolução" dos costumes. A legislação, aparentemente mais liberal quanto ao aborto ou ao planeamento familiar, dos países comunistas associava-se muito mais, como na China, a políticas de controlo da população do que a qualquer liberalismo dos costumes. (A ideia, muito portuguesa, que a distinção entre os defensores e críticos do aborto se faz entre a esquerda e a direita esquece o óbvio: que é muito mais importante nessa distinção a religião do que a política, e que, em muitos países que não são católicos, o problema está longe de se colocar nos mesmos termos. Esquece outras coisas que a leitura do Avante! dos anos 30 ou a tese académica de Cunhal sobre o aborto deveria lembrar.)

Outro aspecto desta reconstrução para o passado das dicotomias do presente, é a que considera a tradição ecológica na esquerda. A crítica ecológica, resumida de forma genérica como uma crítica ao modelo de industrialização ocidental, a favor de outros modelos alternativos menos predatórios dos recursos e voltando a uma visão mais "natural" da vida, seria tratada de reaccionária e anarquizante (no sentido de utópica e "rural") pela esquerda europeia até muito recentemente. O modelo de crescimento "socialista" era baseado exactamente no mesmo conceito predatório do capitalismo industrial, levando ainda mais longe a adoração da "electricidade" (em Lenine) para uma apologia do cientismo, na chamada "revolução técnico-científica" de que se gabava a RDA. Esta visão da industrialização estendia-se ao próprio modelo da sociedade como fábrica, elevando o sistema Taylor à forma suprema de "organização científica do trabalho". Stakhanov e Taylor, os "sovietes" e a "electricidade", a política e a tecnologia.

Para confundir a falsa clareza da identidade esquerda/direita não faltam exemplos. Eles parecem provocatórios porque o retorno que hoje se dá em Portugal à enunciação identitária pela dicotomia esquerda/direita só se pode fazer iludindo os grandes momentos traumáticos da história dessas palavras. A esquerda portuguesa não consegue pensar o comunismo; a direita o fascismo e, em particular, o nazismo. Ambas chegam ao absurdo de dizer que o "estalinismo era de direita e uma ruptura com a verdadeira esquerda" e que o nazismo, como "colectivismo totalitário", era de esquerda. A esquerda hoje diz que nada tem a ver com o comunismo e a direita com o fascismo, o que é uma forma de serem 'fukuyamistas' involuntários. A partir daqui tudo passa a ser confuso: no PC Chinês o que é que valorizamos, o impulso para a economia de mercado, ou a estrutura totalitária do poder? Em Pinochet o que é que valorizamos, a liberdade económica ou a ditadura política? Os bispos progressistas brasileiros são de esquerda porque defendem a reforma agrária, ou de direita porque são contra o aborto? Por aí adiante.

Concluo como comecei: a dicotomia esquerda/direita não tem hoje qualquer utilidade para olharmos para o mundo de forma criativa. O mundo que a originou acabou quando o legado da Revolução Francesa e da Revolução Industrial deixou de ser o pilar da contemporaneidade. Os "factos incómodos", de que Thomas S. Kuhn falava para as teorias científicas, foram pouco a pouco dissolvendo esse mundo: a bomba termonuclear acabou com a "guerra como continuação da política por outros meios" e mostrou a impossibilidade de uma "luta de classes" mundial sem apocalipse, as ideias de Malthus ganharam um novo fôlego com a crítica ecológica, o fundamentalismo religioso introduziu de novo a diferenciação cultural-civilizacional como mais importante do que o conflito "económico", etc. etc. Há tanta coisa para ver de novo, está na altura de ser curioso outra vez.
Historiador

Por José Pacheco Pereira em 28 de Outubro de 2004.

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