Balanço de Luís Miguel Oliveira
O cinema chegou a 2009, com "Avatar", a anunciar uma "nova era", final perfeito para uma década obcecada com a mudança. E nós, espectadores: o que é que vimos nos "anos zero", o que foi isto? Outra boa pergunta: o que é um espectador de cinema? Que venha a década nova.
1. Uma década é uma unidade de tempo tão arbitrária como outra qualquer, um utensílio fornecido pelo calendário para tentar impor uma "ordem" ou, como nas narrativas, um "princípio, meio e fim" àquilo que, na imparável dinâmica das coisas, não possui nada disso. Fazer "balanços", impor um princípio de ordenação, encontrar uma "narrativa" que se distinga de outras, é um impulso humano antes de ser um impulso cultural (ou é um impulso cultural porque é um impulso humano). Não é mau, não é bom, é o que é. Um tipo de arbitrariedade para tentar domesticar a arbitrariedade "cósmica". Se não esquecermos isto, pode-se esperar do exercício que seja minimamente proveitável. Arbitrário por arbitrário, faz tanto sentido falar do decénio 1997-2007 como de 2001-2010 (como, tecnicamente falando, devia ser). Mas por que não, e viva a força dos números redondos, os "poderes do 10" e o "mistério do zero", falar de 2000-2009? Os segundos "anos 00" da história do cinema: o simbolismo é inescapável, para mais numa década em que nos foi sendo garantido que tudo - da política, ao jornalismo, ao cinema - estava a mudar ou já tinha mudado.
No princípio da década o 11 de Setembro "mudou" o mundo, e no final da década foi a prometer "mudança" que um novo presidente foi eleito nos EUA. O cinema chegou a 2009, com "Avatar", a anunciar uma "nova era", um "cinema do futuro", final perfeito para uma década obcecada com a mudança. E nós, espectadores (outra boa pergunta posta pela década: o que é um "espectador de cinema"?), o que é que vimos nos "anos zero", o que foi isto?
Vale a pena ensaiar uns passos por esse sinuoso caminho, na certeza de que ficaremos longe de o esgotar e, outra advertência prévia, que para uma visão mais clara e seguramente mais completa dos "anos zero" do século XXI o melhor é dar um salto a 2030. O tempo é severo mas é dele que vem a luz e, como sabem todos os que gostam de cinema, é o futuro que anuncia o passado e não o contrário.
2. Houve uma coisa que sempre, ou desde cedo, tinha sido sólida e ruiu durante os "anos zero". A boa pergunta do parágrafo anterior: o que é um espectador de cinema? Em 2010, passar os olhos pelos "anos zero", e particularmente pela indústria americana durante este período, não pode ignorar isto, tanto mais que alguns dos passos decisivos dessa indústria ("Avatar", mais espectacularmente) foram uma resposta. Mesmo durante a grande crise provocada pela expansão da TV, nos anos 50 e 60, as coisas continuaram relativamente claras: sabia-se o que era um espectador de cinema e o que era um espectador de televisão. Qualquer deles pagava, de uma maneira ou de outra, para ver filmes, para ver televisão, para ver filmes na televisão - desde a primeira sessão dos Lumière que o "espectador de cinema" era aquele que pagava para ver um filme. Os "anos zero" trouxeram um novo tipo de espectador, o que vê filmes mas não paga. Faz "downloads", duplica, copia, vê os filmes mas não paga - é um espectador de cinema que deixou de contar, economicamente, como "espectador de cinema". Só existe como buraco (de milhões) nas contas de Hollywood. O filme de James Cameron, renovando a "experiência da sala" (para preservar, chamemos-lhe, a "experiência da caixa") através das 3D, é a solução milagrosa para re-chamar os tresmalhados e garantir a manutenção da indústria como a conhecemos ou é um estertor a prenunciar uma transformação ainda inimaginável? Pese o optimismo das máquinas de "marketing" (cuja função é promover o optimismo) e as certezas dos cretinos das caixas de comentários (cuja função é promover o "marketing"), "Avatar", no que toca ao "cinema do futuro", deixa mais perguntas do que respostas.
3. O espectador de cinema dissolveu-se como entidade económica estável porque a tecnologia chegou a um ponto culminante das possibilidades da sua própria vulgarização. Qualquer pessoa com um computador e umas noções rudimentares de circulação pela Internet tem os filmes que quer (e de resto nem precisa da Internet). A tecnologia digital, "maravilha" durante as últimas décadas, revelou nos anos 2000 a sua faceta "monstruosa". A "luz e a magia" deixaram de ser "industriais", como na empresa criada por George Lucas, e passaram a ser "domésticas". Não é a mesma coisa? Talvez não, mas não é seguro que não se trate apenas de um capítulo da mesma história. Só que antes discutia-se o digital na origem, na raiz, na essência da imagem que era captada ou era interposta na imagem captada: o vídeo e a película, o "efeito especial". Os "anos zero" impuseram a discussão do digital no momento da chegada e da recepção, em termos (e numa escala) em que nunca tinha sido posta. Do digital como modo de fabrico ao digital como modo de consumo. Do digital como facto tecnológico ao digital como facto cultural. É um círculo demasiado perfeito para que se possa dizer que não se trata da mesma história. Fenómenos como o YouTube encarregaram-se de garantir o fecho do círculo. Que tem o YouTube a ver com o cinema? Quase nada, ou quase tudo, com menos contradição do que parece. Há muitos anos que o cinema não estava "só" (para usar a expressão de Godard nas "Histoire(s) du Cinéma"), mas nunca esteve tão acompanhado como nos anos 2000, tão arrastado para dentro duma "cultura da imagem", enorme "bulldozer" de indiferença, com que ele só marginalmente alguma vez teve a ver. Como, numa estranha premonição de todo este excesso de imagens dos "anos zero" (e num estranho luto?), a "Branca de Neve" de João César Monteiro (ah, o escândalo), pareceu querer assinalar, logo em 2000.
4. Curiosamente (ou previsivelmente) o cinema dos "anos zero" trabalhou a integração do digital, em todos os seus estados, na sua própria tradição. Enrijecido por cem anos de periódicas ameaças de "morte", o cinema quis mostrar que a morte da película (apesar de tudo, também ela mais resistente do que se previa nos anos 90) pode ser uma "libertação", assim como uma cobra se livra da pele velha e a troca por uma nova. Vimos grandes mestres, mestres vindos de outro tempo, como Ingmar Bergman e a sua "Sarabanda", atirarem-nos uma última espreitadela, dominando o vídeo digital como se a questão dos suportes não passasse de um detalhe, e em última análise provando que não passa de um detalhe. Logo a abrir, em 2000, Pedro Costa estreou "No Quarto da Vanda", um dos mais influentes filmes da década (despertou vocações, gerou inspirações e imitações), apontando um caminho, estético e metodológico (que o próprio Costa ainda não parou de explorar, vide "Ne Change Rien"), para o casamento entre o cinema (como tradição) e o digital (como suporte tecnológico). O mesmo Costa que, de resto, nos deu (em vídeo digital) um dos últimos três grandes filmes sobre a película cinematográfica, "Onde Jaz o Teu Sorriso", com os Straub. (Os outros grandes filmes sobre a película foram de John Carpenter, "Cigarette Burns", ainda mais paradoxal visto que, episódio de uma série de TV, dele não foram tiradas quaisquer cópias em película; e claro, o "À Prova de Morte" de Tarantino, furioso e reaccionário manifesto em favor do arcaísmo e do analógico).
5. A questão película/digital também é um problema económico, pelo que só surpreende a quem tenha passado estes anos com os olhos postos em Hollywood e na "conversão da indústria" que essa conversão tenha arrancado, de facto, das margens, estéticas e geográficas, onde o dinheiro é escasso e os orçamentos se fazem a uma escala diferente. No Irão, Abbas Kiarostami não estreou, durante os anos 2000, nada feito em película, antes se obstinando, em filmes como "Ten" e, sobretudo, "Five Dedicated to Ozu" (o título, neste contexto, já é "todo um programa"), em explorar o vídeo digital como meio de ultrapassar a "vocação narrativa" do cinema (e conduzi-la, de facto, para um terreno próximo da "vídeo arte").
Na Rússia, Aleksandr Sokurov serviu-se das possibilidades de "armazenamento" das câmaras de vídeo digital para concretizar, livre do constrangimento causado pelos 12 minutos das bobinas de 35mm, o sonho de Hitchcock em "A Corda": um plano-sequência de hora e meia pelos corredores do Hermitage, sem os truques que Hitchcock teve que empregar. Foi "A Arca Russa", "tour de force" entre os mais ousados e "vanguardistas" da década, por acaso ou não (na sua relação com a história russa) mais um exemplo em que o "moderno" foi posto ao serviço de uma reflexão sobre a "tradição". O filme de Sokurov também põe em evidência a questão da invenção de um "peso" para estas novas câmaras digitais: a sua resposta em "Arca Russa" (mobilidade, flutuação, suspensão da gravidade) aproxima-o de Michael Mann (quem, na América "mainstream", mais aprofundou o trabalho sobre o vídeo digital, em filmes como "Miami Vice" e "Inimigos Públicos"), tanto quanto o afasta (a ele e a Mann) da resposta de Pedro Costa, que submete a sua câmara a uma gravidade descomunal, impondo-lhe um "peso" que ela de facto não tem (o que, para além de ter origem no facto de Costa ser um cineasta do plano e do enquadramento, configura uma espécie de ética, e de resistência ao próprio digital). O que aproxima Mann e Costa, evidentemente, é a crença na luz como coisa a redescobrir: que ninguém diga que já tinha visto a luz da "Vanda" ou a luz de "Miami Vice". Mencionar, ainda, já que se falou de "resistência", o espantoso trabalho sobre as possibilidades plásticas do digital, conduzidas em direcção ao minimalismo, do espanhol Albert Serra em "O Canto dos Pássaros", o filme mais "2D" desde há muito. Em "double bill" com "Avatar" mostraria bem como um filme pode ser "chato" sem ser "achatado", e "achatado" sem ser "chato".
6. Ainda a propósito da questão económica, importaria referir que o eterno "parente pobre" dos géneros cinematográficos, o documentário, sobreviveu aos 2000 em grande parte graças ao digital. Para o bem ou para o mal, ou melhor dizendo, para o bem e para o mal (não se pode querer ter só uma coisa). As propriedades "domésticas" dos aparatos digitais (novo sentido para a "câmara-stylo" de Astruc) propiciaram até uma nova voga do registo diarístico, pessoal e quotidiano, de que os exemplos mais conhecidos serão os filmes de Agnès Varda ("Os Respigadores e a Respigadora", a abrir a década, e "As Praias de Agnès", a fechar).
7. O caos de um mundo encharcado em imagens. O YouTube. O 11 de Setembro (em rigor, e num sentido que levaria demasiado tempo a explicar, a televisão desse dia devia entrar numa lista do mais "relevante" da década), cujas imagens assombraram o resto da década, inclusive no YouTube, e muito para além da América (o mais genial contracampo do 11 de Setembro é o plano final do "Filme Falado" de Oliveira, e pouco que importa que o filme seja o seu mais fraco). Esta ameaça difusa que vem da sensação de o 11 de Setembro ter sido dissecado "clandestinamente", com imagens de telemóveis, de câmaras de segurança, e etc. Para uma geração inteira (para mais do que uma geração), correspondeu à noção de uma perda da inocência. Uma câmara de telemóvel não pode ser um brinquedo se serve para registar o mais traumático assassínio em massa de tempos recentes. O vídeo - o vídeo caseiro, vulgar de Lineu - como instrumento dúbio, invasor e invasivo ao mesmo tempo, como aparelho capaz de construir, por "roubo", uma verdade para além das verdades oficiais. Uma menção para todos os filmes que foram atrás deste "zeitgest" tão "anos 2000". O "Caché" de Haneke e o seu par perfeito, o "Afterschool" de Antonio Campos. O "Redacted" de Brian de Palma, sobre a guerra do Iraque, e a sua versão melhorada, mais abstracta e mais paródica (mas muito menos vista e muito discutida, "são zombies, senhor"), o "Diário dos Mortos", dessa velha "térmita" do cinema americano que é George Romero.
8. E todos, velhos e novos, solitários quase sempre, obstinados por obrigação, que inauguraram ou continuaram as suas obras como se nada fosse. O velho Rohmer, que na "Inglesa e o Duque" des-diabolizou e domesticou o "efeito especial" (digital...), transformando-o em cartão pintado. James Gray e Wes Anderson.. Oliveira. Rivette. Godard, a transformar a amargura em coisa bela de se ver. Kaurismaki, sozinho e maltratado que nem um cão vadio, autor dos dois filmes mais comoventes da década ("Um Homem sem Passado" e "Luzes no Crepúsculo"). A majestade magoada de Eastwood. Outros, muitos outros. Aquilo a que dantes se chamava os "autores". Estão quase varridos das salas de cinema portuguesas. São zombies, senhor, e encontram-se numa das cinquenta salas dedicadas ao Harry Potter.
9. Que venha a década nova. "No surrender", como na canção de Bruce Springsteen.
Luís Miguel Oliveira, 07.01.2010